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sábado, 13 de junho de 2020

Sobre presença cênica



    Os olhos abertos nos colocam em contato com o mundo fora. Fechados com o mundo dentro. Estar presente é estar dentro e fora. Razão e emoção. Fazendo e pensando. Talvez não seja possível nem necessário excluir o corpo da mente, a razão da emoção, o dentro e o fora. Tudo coexiste.

    Relembro da presença a partir da ideia de “parceria” que Chiquinho Medeiros evocava em suas aulas. Ser parceiro do chão; Do grupo; Do espaço. Apoiar-se nesses elementos, logo, estar presente é não estar sozinho e esse pode ser um exercício muito prazeroso. Apoiar-se no presente e no que ele oferece. Não no passado, não no futuro. “Aqui/Agora”.

    Reflito sobre as demandas da vida ordinária buscando experiências vividas. Na ocasião em que sofri um assalto a mão armada – isso modifica meu corpo e minha presença. Assim, meu estado na cidade passa a ser de fechamento e não de abertura para o espaço e para o outro. A prática artística ocupa então o lugar da reivindicação das possibilidades de humanidade perdidas na vida. A arte como “ultimo refúgio do humano” nas palavras de Antonio Januzelli.

    Para falar em presença, podemos recorrer à ideia de despertar. “Este corpo presente possibilita o estado ao “vivo”, ou seja, do corpo vivo, espontâneo e atento aos acontecimentos e sensações do corpo presente”. É como se pedisse em voz ativa, presente: Desliguem o piloto automático”. O trabalho com presença se materializa no contato do corpo com o espaço, especialmente o chão que aos poucos vai se revelando um grande parceiro.

    Inevitavelmente contextualizo a ideia de presença à linguagem teatral ou da cena ao vivo (que abarca teatro, dança e teatro-dança). Assim, presença é um aspecto que vem ganhando certo protagonismo ao pensar prática do ator em teatro. Na medida em que sob a perspectiva histórica o texto vai perdendo protagonismo, tornando-se apenas mais um aspecto entre tantos outros e o ator contemporâneo passa a lidar com os referenciais de um teatro performativo ou pós- dramático, o trabalho com a presença vai adquirindo grande destaque. No teatro de hoje, o ator-dançarino-interprete em cena não é só aquele que fala seu texto na circunstância de sua personagem. Ele dialoga, canta, dança, representa, toca instrumentos, narra, constrói imagens entre outras centenas de verbos e de aspectos do agir. O ator-dançarino-intérprete ritualiza o seu corpo em cena e o transforma em outro não só do ponto de vista da ficção mas da realidade teatral, ou seja, o corpo de fato sofre do fenômeno cênico e modifica-se a partir dele. Treinamentos e técnicas diversas como Viewpoints e Suzuki (Desenvolvidos por Anne Bogart e Tadashi Suzuki respectivamente) vão tentando dar conta de oferecer ferramentas que vinculem o corpo do ator ao espaço, ao aqui-agora, visando o desenvolvimento de uma prontidão e engajamento total na ação, e de outro lado, desenvolvendo possibilidades de criação na relação entre interprete, tempo e espaço.

    Partimos da ideia de que o espaço da arte contemporânea corre o risco de se tornar o espaço do “vale tudo”. Identifica-se, então, a necessidade de se instaurar procedimentos em processos de criação no contexto das artes do corpo. É desejável que um orientador em artes saiba onde chegar, mas especialmente ‘como’ chegar. A partir daí discutimos paradigmas do corpo lábil versus corpo hábil no contemporâneo. O que a arte cênica contemporânea coloca no lugar do corpo treinado e hábil? O conceito por trás do trabalho? Seu viés político? Sua processualidade? A discussão do assunto presença é recorrente - o desafio de estar presente como algo simples e complexo ao mesmo tempo e o risco de “representarmos” o jeitão da presença. Afinal a ideia de presença tem se desgastado podendo aos poucos ter se tornado um jargão. Estar presente é focalizar simultaneamente estados de atenção (eu, o espaço, o outro, o público) e estar em relação gerando relação e “organicidade”.

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