Páginas

sábado, 5 de setembro de 2020

Apontamentos sobre rituais do corpo na contemporaneidade

“Enumerar novidades
Falar de sentimentos
Teletransportar momentos fotográficos
Descobrir razões existencialistas
Traçar planos de futuro
Lembrar noites alucinadas de verão
Vestir máscara robotizada
Chorar solidão radioativa
Gritar por lírios brancos
Cuspir palavras medrosas
Encarnar personagem nouvelle vague
Transmitir recados telegráficos
Sentir cheiros agradáveis
Enterrar páginas de diário
Ressussitar fantasmas pós-modernos
Rasgar cortinas transparentes
Matar insetos de paixão
Afogar peixes tristes
Furar olhos indiscretos
Enxugar lábios verborrágicos
Suar borboletas azuis
Perder o controle das emoções
Encontrar livros antigos perdidos
Revisitar florestas escuras
Parecer criança mimada
Comer chocolates amargos
Montar quebra-cabeça milenar
Traduzir contos egípcios
Digitar flashes íntimos
Devorar os próprios braços
Acender o último cigarro
Queimar a única chance
Evitar o encontro por acaso
Fugir antes que seja tarde
Dizer a pura verdade
Simular a eternidade das relações
Desprogramar o último ato
Eternizar a efemeridade das conveniências
Telegrafar lágrimas de sangue
Misturar chantily e desespero
Crer na hiperrealidade do veludo
Lamber os dedos cansados
Extraviar mensagens urgentes
Travestir você de alguém
Pedir um pouco de atenção
Esgotar toda paciência
Datilografar sinfonias cortantes
Acreditar no calendário
Detectar crueldades passivas
Delimitar a altura do muro
Ensaiar frases de efeito
Lamentar o som monocórdio
Reduzir o sentimento de culpa
Enxergar além do desejo
Determinar o sim e o não
Explodir de curiosidade
Roer todos os complexos
Exigir ação e reação
Decodificar segredos latentes
Entender que precisamos de fatos”

Jackson Araújo

Despertar, banhar-se, transportar-se, trabalhar, ir à aula, namorar, pausar rapidamente em um café, checar internet e redes sociais, ler, fumar, ir ao cinema, ir ao teatro, comer, ver arte, fazer arte. Durante a semana uma multidão de corpos sofre a ação de diversas ações mais ou menos obrigatórias, mais ou menos programadas: rituais da vida cotidiana. Começo este texto revelando-me na descrição de três dos inúmeros rituais que venho cumprido semanalmente.

Terça-feira de manhã – Escritório na Praça da Sé – Horário comercial. Durante seis horas com algumas pausas para alimentação e necessidades básicas um corpo trabalha: tenso e estressado pelo grande volume de trabalho, disciplinado em regras de vestimenta, convívio social em espaço reduzido e padrões de comportamento. Movimentos e falas padronizados pela necessidade de repetição. Olhar fixo no monitor. O fluxo de trocas com os outros corpos está bloqueado, a voz muda.

Quinta-feira à noite – Auditório da Biblioteca Mário Schenberg – Ensaio de espetáculo - Durante três horas um corpo em jogo de diálogo e criação com outros corpos. Artistas. Os desejos individuais negociando dentro de projeto de expressão artística comum. Através do movimento, da proposição de um “outro corpo” que dança, se altera, brinca e interage com um público. O desejo e reivindicação de um espaço de escuta, de paciência, crença e descrença no coletivo, várias vozes em tentativa de uníssono.

Sábado de manhã – Aula de dança, movimento expressivo: Um corpo que tenta estar disponível e com uma prontidão fisiológica: Alimentado, limpo, alongado e aquecido para dar vasão à expressão autentica de si e para o encontro com o espaço e com o outro.  

A seguir proponho uma breve discussão destes três espaços (trabalho corporativo, prática artística e experiência discente) sem focalizar muito a especificidade da minha experiência, mas discutindo estes espaços de um modo geral. Opto por este percurso, pois os espaços descritos são habitados não só pelo meu, mas por muitos outros corpos – a perspectiva discursiva  será dialogar com provocações e perspectivas teóricas de teóricos como Christine Greiner, David Lapoujade, Boaventura de Souza Santos, Paolo Virno, entre outros, oferecem provocações fundamentais para o entendimento do corpo na contemporaneidade em enfoques que, no geral, deslocam o corpo de um lugar estanque de objeto desta ou daquela área do saber reintegrando-o - como parece querer a perspectiva epistemológica da teoria corpomidia.

O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos  e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com essa noção de mídia de sí mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia como veículo de transmissão. A mídia á qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação. (GREINER: 2005, 131).

Do corpo no trabalho corporativo

Começo pelo espaço do trabalho corporativo que pode ser descrito como aquele em que os corpos devem ser disciplinados para a contenção de seus impulsos para atingirem a  máxima produtividade. A necessidade de padronização da vestimenta e do discurso verbal (escrito e falado), concentração de muitos corpos em espaços pequenos que devem ser otimizados e a repetição incessante de tarefas que gera estado de stress e desmotivação para a interação social são alguns aspectos iniciais que chamam a atenção para os estudos do corpo e que podem ser discutidos aqui. Paolo Virno nos auxilia em seu texto “Gramática da multidão” ao apontar que no sistema econômico vigente o  corpo é equiparado à mercadoria na medida em que é entendido “força de trabalho”. O próprio Virno mais adiante irá investigar as tonalidades emotivas da multidão contemporânea destacando características como o oportunismo, o cinismo, a tagarelice e a curiosidade. 

Sob outra perspectiva, a noção de anorexia da comunicação proposta no texto de Christine Greiner é a que melhor se aproxima do processo vivido pelo corpo em ambientes de trabalho corporativo. O bloqueio dos canais de troca e espaços de convivência, motivado pela desconfiança, competitividade e julgamento como tradução de uma incapacidade generalizada em lidar com a diversidade (de pensamento, religiosa, sexual, inclinações ideológicas, políticas etc). Christine cita Derrida que propõe o conceito de desconstrução cuja questão chave é lidar com a diferença, abrir-se para o outro e romper fronteiras. Quando se trata de espaços compartilhados como o das grandes empresas ou mesmo a paisagem urbana em geral com seus aglomerados humanos esta questão torna-se aguda e urgente.

Neste mundo onde a verdade não é unívoca e a cultura se organiza em processo,  a pior violência seria aquela que de algum modo interrompe o fluxo de informação. Quando radical provoca aquilo que nomeei de anorexia epistemológica, a falta de apetite para o conhecimento. Trata-se de um estado de torpor que interrompe a produção de linguagem e a implementação das imagens internas em ações organizadas, reduzindo a cadeia de metáforas a uma só: A metáfora da morte. (GREINER: 2005, 88).

Evidentemente não é só o espaço do trabalho compulsório que sofre desta espécie de violência que interrompe os fluxos de troca. Na sociedade contemporânea onde a oferta de informação é farta, a escolha de uma perspectiva, um ponto de vista, ideológico que seja, pode soar como um porto seguro, porém também podem ser responsáveis por bloquear a possibilidade de troca, fenômeno que pode invadir campos aparentemente improváveis como o das artes, por exemplo.

Do corpo na atividade artística:

Clássico e contemporâneo, variação e norma, dramático e pós dramático, habilidades e conteúdos são alguns dos paradigmas que invadem o campo das artes e das ciências humanas provocando verdadeiros campos de batalha simbólicos. Fazer arte torna-se, então, um espaço onde acima de tudo ocorre negociação intensa para o bem ou para o mal. Por um lado somos direcionados à escuta e ao encontro com o outro, por outro, alguns posicionamentos radicais que parecem fechar em si uma definição do que seja valor artístico, por exemplo, bloqueia o fluxo de troca e torna a possibilidade de trabalhar junto (premissa das artes cênicas, por exemplo) impraticável. Processos nos quais numa radicalização, uns abrem mão de tudo e outros de nada. Em diálogo evidente com o texto sobre anorexia da comunicação, o texto de Boaventura de Souza Santos ilumina este processo de morte da troca apontado por Greiner do qual o espaço das artes não parece estar imune.

O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: O universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. (SANTOS: 2007, 3).

Excluída a produção de abismos simbólicos que separam o que tem ou não qualidade, valor artístico etc - resta ao campo das artes a virtude e a possibilidade de propor e reivindicar “O outro corpo” e este é um processo especificamente caro para artes cênicas (teatro, performance e dança). Além de trabalhar em movimentos repetidos no mundo do “pós-fordismo” e do “Toyotismo”, o corpo pode dançar, desconstruir padrões estanques de masculino e feminino, propor, enfim, milhares de novas metáfora, permitem ao corpo desbravar novos caminhos no processo evolutivo. Este parece ser o viés e a abordagem dos texto “O corpo artista” e “As metáforas de pensamento” de Greiner.  

Do corpo na relação de ensino aprendizagem em artes:

           A possibilidade de relacionar o conhecimento prévio com o atual, teoria e prática ou mesmo diferentes áreas de conhecimento sobre o corpo são fundamentais nesta reflexão. Fiquei provocado na direção de uma reflexão sobre as possibilidades de diálogo das universidades com o que esta fora delas, assim como a dança dialogar com o teatro o dramático com o pós-dramático, o clássico e o contemporâneo etc. Como um lado não anula o outro. Como modificar o olhar colonizador?

O pensamento abissal já abordado aqui, é um processo que esclarece inúmeros mecanismos de separação: teoria e prática, trabalho e prazer, cabeça e corpo... assim como a arte colocada em um espaço de lazer no final de semana. Nesta perspectiva um grande desafio no campo da educação em artes é a de produzir a relação e não a separação, permitindo ao indivíduo “contaminar” outros aspectos de sua vida com a experiência vivida no aprendizado de artes, reivindica-la como necessária para sua construção como sujeito, para sua formação humana.  

A experiência do corpo em uma  aula de artes pode ser fundamental para estabelecer um diálogo com o que está fora dela. O espaço de ensino-aprendizagem especialmente em artes, para muitos de seus sujeitos (professor e aluno ou formador e aprendiz ou mediador e educando) pode ser um dos últimos refúgios para a experiência humana do encontro. Lembro-me desta fala sempre reforçada pelo diretor e pesquisador Antonio Januzelli, para ele a sala de aula pode ser metaforizada como um laboratório:

Porque “laboratório”? Porque lembra operação, corte, incisão, experimentação, curiosidade, exame, toque, transformação, mistura, absorção, separação, ruptura, junção: descoberta de mundos presentes, mas velados. Porque as coisas precisam ser vistas, observadas, tocadas, abertas, inquiridas, relacionadas, multiplicadas... É assim que vejo a vida seja no teatro ou fora dele: Um laboratório de movimento ininterrupto, tal qual a imagem de um corpo humano vivo. (JANUZELLI: 1992, 50 e 51).

*

Ao olhar para estes três espaços: Trabalho formal, trabalho artístico e formação artística, fica evidente que o processo de  descontinuidade física e intelectual do corpo nos rituais por ele atravessados é brutal e somente a reivindicação de zonas de contaminação entre um e outro pode permitir ao indivíduo a produção de sentidos para sua realização.

Num mundo em que trabalho, estudo, artes e entretenimento coexistem, e se distinguem, o “refúgio” nas artes é tão perigoso quanto o refúgio no trabalho ou na “vida ordinária” na medida em que ambos oferecem o risco do bloqueio da troca de informações que pode ser analisado como um violento processo de morte, o corpo que não troca é um corpo morto.

Se pensarmos que o homem é o que exercita, o reconhecimento dessas zonas de contaminação entre os rituais (mais ou menos obrigatórios) vivenciados pelo corpo, emerge a necessidade de reinventar o trabalho e todas as demais práticas do corpo. A desconstrução para a construção como um movimento vital que permite o movimento, a fluidez e a troca como isotopias da vida. Em oposição, a anorexia da ação comunicativa e o bloqueio do fluxo no trabalho irá reverberar no corpo em outros contextos inclusive nas propostas artísticas. O corpo se alimenta de suas próprias experiências, desta forma qualquer experiência está integrada às demais num processo de comprometimento e imbricação, ainda que não haja um vínculo claro entre as mesmas. Aos poucos certas práticas tornam-se tão discrepantes que pode emergir o pensamento revolucionário e entram em cheque certas perspectivas como “viver a vida e visitar a arte” ou “viver a arte e visitar a vida”. Mas estas parecem ser outras discussões, por enquanto o movimento é anterior: “apagar linhas abissais”.

 

Referências Bibliográficas:

GREINER, Christine. O corpo – Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: AnnaBlume, 2005.

JANUZELLI, Antonio. A aprendizagem do ator. São Paulo: Ática, 2006.

LAPOUJADE, David.O corpo que não aguenta mais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, Revista Crítica de Ciências Sociais, 2007.

VIRNO, Paolo. Gramática da Multidão. AnnaBlume, 2013.