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domingo, 14 de fevereiro de 2021

Recuperação, apropriação, e exploração de partitura, tendo como referência tópicos corporais como Presença, Apoios, Articulações e Peso.

 



"Estou aprendendo a ver. Não sei o que provoca isso, tudo penetra mais fundo em mim, e não para no lugar que costumava terminar antes. Tenho um interior que ignorava. Agora tudo vai dar aí. E não sei o que aí acontece."

(Rainer Maria Rilke, em Os cadernos de Malte Laurids Brigge).


Partituras – Aqui abordo um olhar sobre o emprego de tópicos corporais no contexto de processo criativo em artes cênicas. Por conta dos atuais limites borrados entre as produções de diferentes artes cênicas, poderíamos nominar esta proposta como uma possibilidade de experimentação de tópicos corporais em composições cênicas (ou processos criativos) que exploram sonoridades/textos como material cênico. Processo que possuem como centro de investigação as partituras de ações. Ratifica-se a hipótese da ação física como elemento estruturante do fenômeno teatral. Há uma dupla abordagem das partituras tanto como criação de solos que possam ser repetidos ao longo de uma temporada, por exemplo, quanto como repertório para o jogo com o outro em jogos/improvisos. Essas duas abordagens das partituras nos permitem visualizar uma infinidade de empregos no contexto da arte do ator em diferentes propostas de espetáculos, dos mais tradicionais e ligados à ideia de representação, aos mais pautados no jogo e no improviso. Em todos os casos e especialmente no contexto das partituras de solos, discutimos a impossibilidade da repetição idêntica. Concluímos que cada apresentação é uma apresentação sempre. Entretanto, independentemente desta constatação, o que nos permite repetir? Como criar uma partitura e retomá-la após certo intervalo de tempo? Nesta perspectiva tópicos corporais podem funcionar como pistas para a construção e reconstrução das partituras. Elementos do espaço (presença); peso/leveza; articulação etc. foram sendo incorporados ao trabalho com as partituras. Elementos como focos no espaço, repetição; variação de dinâmica (tempo/ritmo) apareceram quase que como desdobramentos dos tópicos estudados por nós nos processos lúdicos. Desta forma podemos pensar instrumentos para o registro dessas partituras de modo a podermos voltar a elas em momento futuro. Para isto tomamos nota da orientação espacial; do encadeamentos na ação nos níveis alto médio e baixo; do peso do corpo em cada passagem etc.

Exemplo simplificado de Registro de partitura individual de minha autoria:

Espaço pequeno;

Três focos fixos: 1 Placa do lado de fora; 2 bocal de lâmpada no teto ao centro da sala e 3 mancha verde no chão ao fundo da sala;

Deitado de lado olhando o foco 2; Movimento parcial para o foco 3; repete;

“Estou aprendendo a ver”;

Vira no chão torcendo o corpo e olhando o foco 3 pelo outro lado rápido: “Não sei o que provoca isso”;

Apoiando as mãos para abaixar – como um encaixe/corpo de gato “Tudo penetra mais fundo em mim”;

Vai para o plano alto buscando rápido o foco 1 “E não para”;

Alterna focos 1 e dois movimento parcial de cabeça; repete;

Vira o corpo eixo global em frente ao foco 2;

Peso da bacia e joelho solto para descer rápido;

Peso mãos no joelho e no chão repetindo;

Peso para deitar novamente na posição inicial.

O jogo – Seja com o outro ou com o grupo é algo que também merece ser mencionado. Tópicos como “escuta” são retomados no trabalho. A proposta é de investigar estratégias reais e concretas para a construção de uma qualidade cênica de modo a sairmos de referenciais apenas intuitivos do trabalho. Desta forma pode-se evocar, por exemplo, um jogo que consista no simples enunciado de começarmos a andar juntos e pararmos, um a um. A simplicidade não é a mesma no momento de executar e, neste ponto, ficam claras as estratégias tais como: Manter o maior número de pessoas no campo de visão; não fazer mudanças bruscas de direção para não confundir o outro; manter uma trajetória circular e de pulso comum etc.

Preparação do intérprete - O trabalho é físico, assim, tanto a partitura que se encaminha para a construção de solos, quanto a que desemboca em jogo e improviso carecem de uma disponibilidade física do intérprete. Neste ponto é possível afirmar que são trabalhos que demandam do intérprete uma preparação, um condicionamento e uma “vocação” para as horas de criação e trabalho. Menos inspiração e mais transpiração. Durante a execução dos jogos em dupla, por exemplo, fica clara a necessidade de corpos disponíveis para a repetição; a mudança brusca de níveis e ritmos que tornam o jogo envolvente e interessante para o espectador.

Voz como corpo – Diferentemente do que costuma acontecer nos cursos de artes cênicas, corpo e voz podem ser tomados como aspectos inseparáveis tendo em vista que a voz ocorre a partir do corpo, quando ocorre. A dificuldade é notável, afinal, falar a partir de um movimento ou integrar fala e movimento é uma questão muito cara. A forma de falar partiu do corpo ou de uma racionalização? Precisamos reaprender que fala também é corpo e no geral nos ensinam equivocadamente voz e corpo separadamente na formação tradicional. Em momentos iniciais de experimentação, é possível perceber que a fala quase que sai raspando ou machucando um pouco a garganta, afinal, nem todas as posições corporais são propicias para que a fala saia sem bloqueios. A relação direta da emissão da voz e o “apoio” é muito clara durante as experimentações. Muitas posições oferecem resistência à passagem do ar. Outra questão que ficou ecoando em minha investigação é “para quem você está falando?” A partir daí tudo parece mais claro e até mais confortável de realizar. Como se isso representasse um passo a frente no trabalho, mas que não pode ser dado sem o momento de exploração anterior. No geral na prática da atuação a fala é endereçada a alguém: Uma plateia, outro ator, um conjunto de atores. Falamos para alguém numa circunstância de comunicação. Mas, de fato, isso ainda é algo posterior, antes de tudo está a tentativa de reintegrar corpo e voz justamente para que o corpo não negue a fala. E mesmo após a integração do corpo e da fala e após a fala inserida no contexto da comunicação, podemos problematizar este trabalho pensando em “estéticas da voz”. A fala naturalista que se diferencia da fala performativa etc. Todos esses aspectos tornam a questão da fala e da palavra um fenômeno complexo no contexto da arte.