“Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou
qualquer coisa de intermédio
Pilar
da ponte de tédio
Que
vai de mim para o outro”
Mário
de Sá Carneiro
Independentemente
da estética ou gênero abordado (naturalismo, épico, dramático, performativo) o
trabalho do ator sempre passa pela investigação de sua relação com “o outro”
seja este outro ator ou espectador. A arte do ator de algum modo está fundada
em “relações” dramáticas, afetivas etc. Para haver cena deve haver antes uma
relação clara entre os intérpretes e destes com o público. A investigação desta
relação parece ser uma das matrizes ou princípios desta arte.
A relação do ator
com o publico, por exemplo, merece uma atenção especial. Cada gesto diante da plateia
será olhado, interpretado e lido no contexto de uma obra artística. O ator
estará sempre persuadindo, seduzindo, comentando, intermediando obra e público
e algumas vezes criando a obra “com” o público. Ou seja, a relação com este
público é condição ou requisito para a recepção da obra artística. A relação do
ator com outro ator em cena também é o fundamento da construção de inúmeros
aspectos como conflito (no caso do teatro dramático ou realista ou dito
mimético). Ou mesmo a existência de relações espaciais, relações de tempo-ritmo
em cenas mais abstratas. Estando “em relação” o ator é sempre um contraponto ou
complemento do outro para que a cena aconteça.
Também podemos
mencionar as inúmeras possibilidades de exploração da relação do ator com o espaço,
entretanto, como recorte focamos aqui ator-espectador e ator-ator. A necessidade
de estar em relação com o outro é um princípio na arte do ator.
Independentemente da estética focalizada sempre haverá que se estabelecer uma
relação clara com o outro ator em cena e com o público. Na cena ao vivo isto se
torna ainda mais evidente. Nas artes cênicas da atualidade, nada se encerra no indivíduo.
A dinâmica da comunicação acontece ao criar-se relações entre dois atuadores,
entre atuador e público ou entre atuadores e público. Os “entres” que estas
relações criam, assumem infinitas feições, mas trata-se sempre da dimensão
poética instaurando-se e multiplicando significados;
Na medida em que os espetáculos saem
da caixa preta e do palco italiano, ganham ruas, espaços não edificados para
fins teatrais etc. Da mesma forma que o texto vai deixando de ser o centro da
cena e os atores vão sendo trazidos para um encontro com a situação real do
teatro em detrimento de estéticas estritamente ficcionais. Há um desejo
implícito na arte contemporânea de realizar um encontro real e não representado
com o público.
A importância de retornarmos aos
nossos pedagogos e encenadores nacionais, constituir e reconhecer a nossa
identidade são urgentes. Nesta perspectiva, a capacidade de “fazer pontes”
entre teatro e dança, clássico e contemporâneo etc. - é um aspecto chave para
se pensar a arte do ator na contemporaneidade, na medida em que cada vez mais
as fronteiras entre as artes vão se diluindo e a integração vai emergindo.
Atuar passa a envolver inúmeras habilidades e competências do ator: dançar,
atuar, cantar entre outras inúmeras possibilidades de linguagens que se fundem
no contexto de criação de uma obra artística. Do ponto de vista estético a arte
do ator vai se transformando de acordo com as demandas do tempo. A nova
abordagem do trabalho do ator tem envolvido o diálogo intenso entre diversas
linguagens artísticas. Assim o teatro se aproxima da dança, da música e da
performance. O ator irá se desenvolver em contextos diversos como o da arte da
representação de um lado e as estéticas do real de outro. Nesta perspectiva a
formação técnica do ator também irá abarcar cada vez mais o conhecimento que
vem das linguagens da dança, da performance, da música etc.
Pensar o ator em formação é pensar o indivíduo em formação, cultivar uma visão de homem que inspire a arte. Pensar o interprete como um ser humano, sua história, sua identidade sua visão de mundo em diálogo e alteridade em relação ao outro (seja ele o personagem ou obra ou os parceiros ou o público). A arte do ator também é pensada sob a perspectiva de sua função social. A formação do indivíduo; A permanente revisão e discussão sobre a condição da humanidade, seus valores e princípios; A construção e afirmação de uma identidade artística e a consciência da responsabilidade do ator como sujeito que age no mundo por meio de uma prática artística alinhada a aspectos éticos e estéticos. Aspectos como a aguçada e permanente reflexão sobre a visão de homem e de arte em oposição ao que se pode entender como simples exercício de ego e que configura a atividade do ator como arte capaz de dialogar com a realidade intervindo diretamente em contextos mais amplos como o social e o político.
Muito tem se falado a respeito de “presença” quando o assunto é arte do ator, logo, muitas são as definições de presença que encontraremos. Para alguns presença pode dizer respeito a uma espacialidade dentro de outra espacialidade; uma espacialidade gerando e conectando outras espacialidades. As abordagens e as escolas são as mais diversas. Encontramos eco deste tópico em Piter Brook, Jacques Lecoq, Josétte Feral, Eugênio Barba, Yoshi Oida para citar apenas alguns dos nomes que nas últimas décadas lidaram com o tema em sua prática artística e em registros escritos.
Aos mesmos nomes citados acima juntamos outra infinidade quando o tópico é “relação”. Grandes encenadores e pensadores das artes cênicas tem se dedicado a aprofundar o ator em relação com o outro e com o público dando-nos uma perspectiva quase que historiografíca se pensarmos nas contribuições de Stanislavski a Brecht passando por Grotowski; de Bob Wilson a Pina Bausch passando por Ariane Mnouchkine e o brasileiro Antunes Filho. Mas será o curador e crítico de arte Nicolas Bourriaud quem servirá como referencial teórico atualizado para as reflexões a respeito da noção de relação neste trabalho de modo que se estabeleça um diálogo com a pratica artística feita nos dias de hoje. No que diz respeito ao assunto desta pesquisa as idéias de Bourriaud encontram uma síntese no seguinte sentença:
A estética relacional, portanto,
está ligada a “uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das relações
humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico
autônomo e privado”. (BOURRIAUD, 2009).
Bourriaud cujo pensamento encontra forte eco e diálogo com o pensamento de Walter Benjamin, define “estética relacional” não como uma teoria da arte, mas uma teoria da forma, que se desenvolve através de signos, objetos, formas e gestos. A forma da obra de arte contemporânea se estende além de sua forma material, ela é um princípio dinâmico, não um objeto fechado sobre si mesmo, mas uma relação construída com o outro. A arte de hoje pode ser entendida como um processo de trabalho, um modo de produção que logo que alcança o público, torna-se instantaneamente uma coletividade. O outro passa a ter um papel fundamental na obra, não existindo mais “espaço entre” obra e público na medida em que as obras são construídas “com” o público. Desaparece, assim, a aura inalcançável da obra de arte.
Referências Bibliográficas
AZEVEDO, Sonia M. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BENJAMIN, W. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
LAKATOS, Eva Maria e MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de Metodologia Científica. São Paulo: Atlas, 2010.
MILLER, Jussara Corrêa. Qual é o corpo que dança? São Paulo: Summus, 2012.
PARDO, Ana Lucia. A teatralidade do Humano. São Paulo: SESC, 2011.
PAVIS, Patrice. 1999. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva.
OUTRAS PUBLICAÇÕES:
Revista Sala Preta Teatros do Real: memórias, autobiografias e documentos em cena. v. 13, n. 2. 2013.