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sábado, 27 de junho de 2020

O corpo tensionado entre experiências artísticas e cotidianas


“A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço”.
                                                                                              Jorge Larrosa
A força que a multidão, o trânsito urbano e o trabalho exercem sobre nossos corpos é deformadora. A arte e emerge como um dos últimos espaços de resistência para o corpo? Último refúgio para o humano? Pergunto-me. Podemos pensar a “experiência” como educadora do corpo e como intermediadora do conhecimento. Qual corpo está aberto para a experiência? O que – no corpo - bloqueia a possibilidade de experiência? Alguém poderia citar aqui o famoso texto “Notas sobre a experiência e o saber da experiência” de Jorge Larrosa Bondía. Novamente penso na relação das minhas leituras e práticas anteriores com o que acontece com meu corpo agora. Nas artes cênicas, artistas, encenadores e teóricos perseguem estados semelhantes para os interpretes/atores/dançarinos/performers... Atuadores da arte ao vivo em geral. Há uma continuidade notória no trabalho dos grandes referenciais Spolim-Ryngaert-Stanislavski-Grotowski-Antunes-Klauss!
Certa vez uma colega de curso no campo das artes do corpo comentou seu prazer pela concretude que os exercícios práticos geram, opondo isto à ideia de memória afetiva ou abordagens psicológicas presentes na prática teatral. Fico muito provocado por esta ideia sempre recorrente que muitos insistem em atribuir ao encenador russo Stanislavski. Anos atrás pude ler mais profundamente o legado do Teatro de Arte de Moscou e hoje tenho a forte convicção de que o método de Stanislavski não está baseado na memória ou na psicologia. Seu método parte das ações físicas. Para Stanislavski em seu método de ações físicas, as pequenas ações encadeadas são como pistas para nosso “inconsciente” ou para produzir um despertar de nossa sensibilidade. Associo a ideia de ‘apolíneo’ como este caminho metódico das ações físicas – toque no corpo do outro e ‘dionisíaco’ como o desembocar ritualística, aquilo que surge a partir da ação e do estímulo físico. Assim, apolíneo e dionisíaco são qualidades das artes cênicas que podem não estar dissociadas.
Quais as possibilidades de romper com padrões corporais e fornecer ao corpo a possibilidade de novas experiências a partir da ideia de instabilidade e desequilíbrio? “risco” e “medo” estão associados à impossibilidade de investigar determinada dinâmica corporal. Lembro-me que o segundo exercício que fiz no CPT consistia em abandonar-se ao chão e deixar que o corpo nos salvasse antes da queda. A dificuldade do abandono era tremenda e eu me lembro de ter sido um dos últimos a experimentar o exercício. Ao longo dos meses outro exercício que Antunes batizou de funâmbulo (grosso modo: andar por uma corda bamba imaginária) também propunha esta experiência de desequilíbrio no corpo. Estes exercícios não fizeram sentido imediato para mim, mas tempos depois, encontrando-me com outras técnicas comecei a compreendê-lo. Percebo que as proposições de Antunes Filho e Klauss Vianna muitas vezes parecem dialogar no que diz respeito a partir do corpo e de um trabalho de reencontro com sua dinâmica fisiológica. A este ponto já estou convencido de que o trabalho do ator inicia a partir do reencontro com a própria fisiologia. Primeiro a fisiologia, depois a relação com o espaço e com o outro e por último ou como resultado, o nascimento de uma expressão autêntica. A ideia de um aprendizado que se dá pela possibilidade de experienciar é muito cara nas artes cênicas. A experiência também consiste em abandonar velhos padrões, deixar de lado o que já fazemos bem.

sábado, 13 de junho de 2020

Sobre presença cênica



    Os olhos abertos nos colocam em contato com o mundo fora. Fechados com o mundo dentro. Estar presente é estar dentro e fora. Razão e emoção. Fazendo e pensando. Talvez não seja possível nem necessário excluir o corpo da mente, a razão da emoção, o dentro e o fora. Tudo coexiste.

    Relembro da presença a partir da ideia de “parceria” que Chiquinho Medeiros evocava em suas aulas. Ser parceiro do chão; Do grupo; Do espaço. Apoiar-se nesses elementos, logo, estar presente é não estar sozinho e esse pode ser um exercício muito prazeroso. Apoiar-se no presente e no que ele oferece. Não no passado, não no futuro. “Aqui/Agora”.

    Reflito sobre as demandas da vida ordinária buscando experiências vividas. Na ocasião em que sofri um assalto a mão armada – isso modifica meu corpo e minha presença. Assim, meu estado na cidade passa a ser de fechamento e não de abertura para o espaço e para o outro. A prática artística ocupa então o lugar da reivindicação das possibilidades de humanidade perdidas na vida. A arte como “ultimo refúgio do humano” nas palavras de Antonio Januzelli.

    Para falar em presença, podemos recorrer à ideia de despertar. “Este corpo presente possibilita o estado ao “vivo”, ou seja, do corpo vivo, espontâneo e atento aos acontecimentos e sensações do corpo presente”. É como se pedisse em voz ativa, presente: Desliguem o piloto automático”. O trabalho com presença se materializa no contato do corpo com o espaço, especialmente o chão que aos poucos vai se revelando um grande parceiro.

    Inevitavelmente contextualizo a ideia de presença à linguagem teatral ou da cena ao vivo (que abarca teatro, dança e teatro-dança). Assim, presença é um aspecto que vem ganhando certo protagonismo ao pensar prática do ator em teatro. Na medida em que sob a perspectiva histórica o texto vai perdendo protagonismo, tornando-se apenas mais um aspecto entre tantos outros e o ator contemporâneo passa a lidar com os referenciais de um teatro performativo ou pós- dramático, o trabalho com a presença vai adquirindo grande destaque. No teatro de hoje, o ator-dançarino-interprete em cena não é só aquele que fala seu texto na circunstância de sua personagem. Ele dialoga, canta, dança, representa, toca instrumentos, narra, constrói imagens entre outras centenas de verbos e de aspectos do agir. O ator-dançarino-intérprete ritualiza o seu corpo em cena e o transforma em outro não só do ponto de vista da ficção mas da realidade teatral, ou seja, o corpo de fato sofre do fenômeno cênico e modifica-se a partir dele. Treinamentos e técnicas diversas como Viewpoints e Suzuki (Desenvolvidos por Anne Bogart e Tadashi Suzuki respectivamente) vão tentando dar conta de oferecer ferramentas que vinculem o corpo do ator ao espaço, ao aqui-agora, visando o desenvolvimento de uma prontidão e engajamento total na ação, e de outro lado, desenvolvendo possibilidades de criação na relação entre interprete, tempo e espaço.

    Partimos da ideia de que o espaço da arte contemporânea corre o risco de se tornar o espaço do “vale tudo”. Identifica-se, então, a necessidade de se instaurar procedimentos em processos de criação no contexto das artes do corpo. É desejável que um orientador em artes saiba onde chegar, mas especialmente ‘como’ chegar. A partir daí discutimos paradigmas do corpo lábil versus corpo hábil no contemporâneo. O que a arte cênica contemporânea coloca no lugar do corpo treinado e hábil? O conceito por trás do trabalho? Seu viés político? Sua processualidade? A discussão do assunto presença é recorrente - o desafio de estar presente como algo simples e complexo ao mesmo tempo e o risco de “representarmos” o jeitão da presença. Afinal a ideia de presença tem se desgastado podendo aos poucos ter se tornado um jargão. Estar presente é focalizar simultaneamente estados de atenção (eu, o espaço, o outro, o público) e estar em relação gerando relação e “organicidade”.

sábado, 6 de junho de 2020

Fragmentos sobre corpo na arte: Breves reflexões a partir da teoria Corpo-midia de Greiner



“Corpo como plataforma semântica do mundo” Cris Greiner.

     No livro “O corpo”, Cris Greiner lança o conceito de corpo-mídia. As relações de corpo como casa, anatomia, instrumento, matéria ou expressão é provocada e posta em movimento pela idéia de corpo-midia. Corpo não é abrigo, corpo “é” (Como artista e ateu gosto desta idéia). O corpo tem autonomia e está em relação de troca com o ambiente. Muitas referencias teóricas são evocadas desde Darwin a Foucault (biopolítica) passando por Deleuze, Merleau Ponti (filosofia da carne), Nietzsche, Espinoza (corpo em relação) e Artaud (corpo sem órgãos). A proposta é organizar um conhecimento a partir do corpo e não sob a perspectiva de disciplinas como estamos acostumados a fazer (pistas para estudos INDISCIPLINARES). A proposição de novas metáforas para corpo, novos vocabulários como uma forma de sair de velhos quadros de referencia. Diante deste turbilhão de ideias penso que a teoria corpo-midia me ajuda como artista, pois é neste terreno que quero desestabilizar algumas tendências, entretanto, na vida ordinária, fora da arte, tenho dificuldade de pensar o corpo com esta autonomia, na vida sempre estou pensando corpo a partir da sociologia, da saúde, da cultura etc.

1) A arte irá desestabilizar a noção de corpo. Para Kant a arte como beleza é um dom de poucos. Esta ideia choca-se com a proposição de corpo-midia. O Corpo-midia: Nunca está pronto, sempre se modifica, sempre instável, sempre em fluxo. Nietzsche irá questionar Kant em relação a esta ideia de beleza e dom. Construo um quadro de referencias em que penso dois grupos: De um lado ‘Aristóteles, mimese, Kant, Ilusão, Ferreira Gullar’ e de outro ‘Nietzsche, performance, estética do real, Duchamp, corpo-midia’.

2) Como lidar com o rastro de uma formação tradicional? Como arte é pensada de forma tão diversa e muitas vezes refém de instituições (escola, TV etc.)? Penso no conceito de socrático de maiêutica como uma chave para o dilema da formação de um artista e dos debates sobre corpo-mídia. A Maiêutica tem como significado "Dar a luz (Parto intelectual)” procurando a verdade no interior do ser humano. Sócrates conduzia este processo levando os interlocutores a duvidar de seu próprio conhecimento a respeito de um determinado assunto para, em seguida, conceber por si mesmo uma nova ideia, uma nova opinião sobre o assunto em questão. Por meio de questões simples, inseridas dentro de um contexto determinado, a Maiêutica dá à luz ideias complexas. A maiêutica baseia-se na ideia de que o conhecimento é latente na mente de todo ser humano, podendo ser encontrado pelas respostas a perguntas propostas de forma perspicaz.

3) A informação está na relação entre artista e público e não na obra em si. Só comunicamos/informamos na medida em que surpreendemos, fornecemos algo novo. Pensar que cada público receberá a obra de uma forma a partir de sua própria experiência. Relaciono isto com minha formação em linguística. Em semântica temos que um sistema de comunicação produz sentidos a partir de operações de diferença. Ao pensar Corpo Artista: Não importa “o que” mas o “como”.

4) Função evolutiva da Arte: A arte possui função evolutiva e mobilização do sistema límbico (sentidos, sentimentos e sensações como prazer e medo). Arte irá acionar o ouvido pelo visual e vice versa. Ou ver e bater no estomago, náusea etc. Arte como renascimento do que morreu passando para o nível simbólico.

5) Arte e memória: Arte a partir da memória do artista. Criação a partir de registros. Memória contaminada pela ficção ou nostalgia. Memória do corpo: História da moça que perdeu a memória mas não esqueceu de como dançava. Lembro-me de treinamentos de qualidades que identifico em meu corpo e no dos outros.

REF: GREINER, Christine. O Corpo: Pistas para Estudos Indisciplinares.